quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Vida de Ana

Ana não deixa a vida brincar com ela. Todos os dias a Vida bate na sua porta. Ela já chegou com bola pra jogar, tinta e tela pra pintar, boneca pra brincar, mas Ana não quer jogar, não quer pintar, não quer brincar. Toda vez que a Vida chega na porta da menina ela já grita – Ana! E Ana responde – hoje não Vida! Vem amanhã. E a Vida vem sempre amanhã, e o amanhã vira hoje e hoje vira ontem e ontem a menina quase sempre esquece. Ana hoje e Ana ontem não quer brincar com a vida. Mas por que não hoje, ora bolas? O que é que Ana faz de tão interessante, que ela passa adiante a oportunidade de brincar com a Vida, de talvez se divertir, e de até gostar da Vida e não querer nunca mais voltar pra aquela casa. Não que a casa seja um problema, ou não seja uma boa casa, mas que talvez depois da Vida, a casa seja só uma casa, uma casa sem a Vida. Bom isso a gente já sabe, que a casa não tem a Vida, mas então o que é que ela tem? Ana escolhe ficar ali todo dia, alguma coisa tem que ter. Bom ela tem duas portas, uma para entrar pela frente e outra para entrar por trás. Uma janela na frente, que Ana muito de vez em quando, de vez em quando mesmo, pára pra olhar um pouco lá fora a estrada de terra, as crianças que nela correm, as árvores, e o sol que brilha com muita freqüência naquela região. Nesses dias de sol o céu fica exatamente aquele azul que deu origem à expressão “azul da cor do céu” de tão azul. E não é que Ana quase nunca via esse azul, ela ficava enfurnada, fazendo não sei nem o que. Ninguém sabe como é o interior da casa, e o que é que ela faz lá dentro, mas sei lá, não deve ser melhor do que brincar com a Vida. E a Vida, de tão iluminada e intensa, nunca desistiu de bater na porta da Ana. E Ana nunca desistiu de dizer volta amanhã.
E hoje Ana já não é menina, já não vai mais até a janela ver a estrada de terra, o céu azul, o sol e as crianças correrem. Ana não pode mais correr com as crianças, hoje seu peito aperta um pouco porque ela gostaria de correr, ela gostaria de ter corrido, ela gostaria de ter corrido que seja só uma vez, só pra saber como é correr naquele chão de terra entre as árvores, com cheirinho de eucalipto, junto com tantas crianças, Ana queria, mas não dava mais. O curioso é que a Vida não desistiu, ela bateu há agora pouco na porta de Ana, e Ana já uma mulher de idade avantajada rejeitou mais uma chance de brincar com a Vida. Gente, mas quem disse que brincar tem que ser correr e pular, quem disse que brincar é coisa de criança! Se fosse só de criança a Vida não teria vindo agora pouco bater na porta de Ana. Ana sempre pensava: amanhã eu vou, amanhã eu encontro com a Vida. Hoje quando Ana gritou – hoje não Vida! Volta amanhã! – um nó se instalou permanentemente em sua garganta, ela mal conseguia engolir, era ruim demais. Seus olhos se encheram de lágrimas depois do nó formado, ela sentiu seu coração comprimir de medo e arrependimento de ter esnobado a Vida todos esses anos. Ela não acreditava, que depois de tanto tempo, e tantos nãos, a Vida estava ali firme e forte batendo na sua porta. Na sua porta! Na porta de Ana! A Vida ainda batia na porta de Ana! Ana percebeu o quanto a Vida ainda estava disponível e louca pra brincar com ela, não importava o dia, não importava a idade e não importava a Ana, tanto fazia se menina, mulher, velha. A Vida queria Ana, e hoje Ana também queria muito a Vida, queria correr com a Vida, sabia que correr não dava mais, mas alguma coisa dava, porque senão a Vida não estaria ali ainda. Então depois disso tudo, resolveu tomar coragem, e foi dormir preparada pro dia seguinte, preparada pra dizer sim para a Vida. Ela foi dormir feliz, preenchida e cheia de coragem para brincar com a Vida. Ana nunca tinha sentindo isso, acho que Ana já sentia a Vida antes mesmo da Vida bater em sua porta. Ana estava animada, foi dormir vivendo, foi dormir pronta pra viver. Ana depois de uma vida, nesse momento ia dormir viva, com a Vida dentro dela. Ana foi dormir. E no dia seguinte a Vida não bateu em sua porta. Ana dormiu muito, um sono profundo, sono de anos, sono de vidas.

4 comentários:

  1. Lindo e me fez pensar. Um dia, quando eu não era Ana... me fazia a mesma pergunta. Depois saí de casa (sem nenhum suporte financeiro e emocional dos outros). Saí porque queria encontrar um lugar no mundo ainda não determinado. E encontrei um mundo de Anas pelo caminho e descobri e questinei suas escolhas, manias, apegos. Quando entrei naquela que seria "MINHA" primeira casa passei por um período de estranhamento. E anos depois me tornei uma "ANA" e não posso falar por todos, mas posso falar por alguns. Que a "nossa" casa é como um nirvana. É a maior das conquistas. É pessoal... é porto seguro (mesmo que imaginário). Pra quem conhece a luta que é "ir embora" e não olhar pra trás, dividir apto com estranhos, não saber se vai ter grana pra comer ou pagar as contas;dividir o mesmo espaço com gente que tá se lixando pra vc e mesmo assim não ligar pra casa pedindo arrego (porque isso fazia parte do processo);quem escolheu construir a própria família (porque a de origem nunca foi a idealizada)... a casa, a relação, o fruto são nossos lugares sagrados. A CASA, nesse caso, é a própria VIDA! Porque não é o lugar, mas como vc se sente onde está, o valor "histórico" que tem pra vc. Em contraposição tudo que se torne uma ameaça ao "templo" tem, assustadoramente, muito de morte... Algumas Anas são como animais selvagens, cuidando de seu habitat... E,as vezes, exageramos. Mas a Vida tá ali, pulsando, arrebentando o peito.

    "de que me vale ser filho da santa
    melhor seria ser filho da outra
    outra realidade menos morta
    tanta mentira tanta força bruta"

    "...) mesmo calada a boca resta o peito
    silêncio na cidade não se escuta"

    É isso aí Chico!

    ResponderExcluir
  2. Alguém tinha que ter avisado pra Ana que a Vida é hoje, é agora, é o que é e não o que se queria que fosse.

    ResponderExcluir
  3. com certeza jarbinhas, mas acho que o mais importante é que ana, mesmo ja velhinha nao desistiu da vida, resolveu abrir porta, mesmo sendo o ultima dia da sua vida, nunca é tarde pra viver. frase cafona, mas é né!

    ResponderExcluir
  4. Vida é tudo que está vivo! Vida é atemporal!:-)

    ResponderExcluir