domingo, 8 de agosto de 2010

Para o meu pai

As fotos da minha vida.

As primeiras fotos ficaram na minha lembrança, você me deu aquela câmera tijolo, com aquele filme comprido para eu levar na minha primeira viagem sozinha, o acampamento NR. Tirei várias fotos, devo ter trocado de filme umas duas três vezes, era simples - só encaixar o objeto no seu lugar apropriado e pronto não tinha que puxar nada, fazer girar ou qualquer outra complicação. A cada troca, eu abria retirava o filme usado, jogava fora e colocava o novo dentro... E assim foi, até o meu retorno acompanhada apenas da câmera - os filmes ficaram nas latas de lixo do NR, junto com as minhas primeiras imagens. Você não me disse o óbvio, e se hoje o óbvio para mim ainda não é óbvio, imagina com seis anos de idade... Com câmera, sem filme, sem fotos, com muitas imagens que ficaram só pra mim.

Com sete anos você me deu uma Kônica modelo Tomato. Câmera lindinha, vermelhinha que na proteção da lente tinha um tomate perfeito desenhado. Eu a carregava pendurada em diagonal do ombro esquerdo ao lado direito do meu quadril. Fazia fotos de tudo e qualquer coisa, os carros americanos, prédios espelhados, pessoas. Também ficava atrás de você tentando ver o que é que você estava vendo, o que é que você estava fotografando.

Já adolescente, devia ter uns 15 decidi pegar uma optativa na Pine Crest, Photography com o Mr. Lawman. Você me deu a sua Pentax Asahi para eu aprender, e como eu aprendi, e como eu fotografei. Vivia com a câmera pendurada em diagonal do meu ombro esquerdo ao lado direito do meu quadril. Minhas amigas eram o meu sujeito principal. Quantos sorrisos e movimentos eu consegui perceber e enquadrar. Em Photography me senti super importante, eu tive finalmente a oportunidade de entrar num darkroom para revelar as minhas imagens. Lembrava tanto do seu laboratório no subsolo da Kobe, era lindo, grande e cheio de coisas que eu não sabia para que servia, mas como eu gostava, como eu gostava daquele cheiro forte do fixador. As fotos em preto e branco penduradas no varal, a imagem aparecendo como mágica no papel branco, e você dizia “olha só é mágica”, eu achava aquilo tudo incrível. A luz vermelha alaranjada que fazia daquele espaço um quarto escuro. Eu me sentia muito bem ali desde sempre, apesar de não entrar com tanta freqüência. Com 15 estava eu lá, misturando as químicas, enquadrando as imagens para depois expor o papel à luz. Passava horas do meu dia lá dentro, ouvindo música no meu discman sozinha, era um momento de encontro comigo, com as minhas fotos com a história que acontecia dentro de mim. Eu ampliava as fotos, te mostrava, e você as lascava de críticas e eu muito defendida nunca estava disponível para ouvir de primeira, e depois de um pouco de stress eu já estava recebendo tudo o que você tinha para me ensinar, e louca para sair e fotografar novamente, já com um olhar mais lapidado, mais consciente – foi aí que comecei a realmente ver o quadro e escolher como eu queria ver os momentos, eu tinha a sorte de poder olhar os momentos.

Com 17 você construiu um laboratório só pra mim, ele tinha a minha cara, era o meu espaço. Não durou muito, mas foi muito bem utilizado, vivi muito ali dentro, era um momento de paz e encontro. Foi todo escolhido pelo catálogo da B&H.

A coisa começou a ficar mais séria, estava fotografando tudo, queria viver disso, viver com isso pro resto da minha vida. Queria fotografar gente e momentos. Você me deu uma Nikon 6006, foi difícil abrir mão da Pentax, tinha criado uma relação com ela, mas a Nikon era linda, era automática, e mais importante ela parecia com a sua Nikon F4 que você sempre levava nas nossas viagens, e finalmente poderia dividir lentes com você, as câmeras eram compatíveis. Como eu usei essa câmera, ela foi minha grande companheira por muito tempo, ela viu Paris, Provence, Polônia, Israel, Chapada Diamantina, Gainesville... Ela me viu. Me encontrei na câmera, nos meus auto-retratos. Quantas noites eu virei me produzindo, me enquadrando e me fotografando. Escolhi ser fotógrafa, passei dois anos e meio naquela faculdade descobrindo o meu olhar que até então era muito atrelado ao seu. Lá descobri que a foto não precisava mais ser bonita, ela tinha que ter conteúdo, lá me apaixonei pelo Duane Michaels. Queria expressar toda a angústia que sentia naquele momento através das minhas fotos, queria contar as minhas histórias. Photo Narrative, a possibilidade de dar seqüência, era isso - contar histórias.

De repente foi tudo interrompido, voltei para o Brasil atrás de vocês. Cheguei a fotografar produtos, era horrível não tinha e não tenho o menor talento para aquilo, mas era o que dava dinheiro. Gostava mesmo era de me fotografar, de fazer poesia em imagem e não via mais espaço para isso, o filme ficou caro, papel, revelação, não tinha mais laboratório, não tinha mais prazer. As câmeras foram substituídas e eu não consegui me adequar, acompanhar. Você também não estava mais quase fotografando, tanta coisa séria acontecendo, não havia mais espaço e nem tempo para um hobby. Os anos passaram e eu parei completamente de fotografar, foi importante, abri espaço para o teatro e para entender porque que me fotografava tanto. Mas a verdade é que havia uma lacuna dentro de mim. Há quase dois anos voltei a fotografar, porque a vida quis assim. Não foi uma escolha consciente, me chamaram eu aceitei e sem querer e aos poucos fui redescobrindo o que estava tão distante. Primeiro o André me emprestou a câmera dele, mas logo depois ela quebrou e me vi obrigada a te pedir a sua emprestada. Aí sim, estava eu novamente fotografando com uma câmera profissional, uma Nikon D200, essa automática e digital. A fotografia está hoje presente em mim, me re-conectei, nasci para fazer isso também da minha vida, seja lá como for. Acompanhar momentos com a câmera na mão, ver esses momentos depois como uma escolha do meu olhar me emociona e me preenche.

A fotografia é um pedaço de você que está dentro de mim, dentro da minha história. A fotografia também é um pedaço da vovó, que está dentro de você e que claro está dentro mim. Lembro quando vi as fotos dela pela primeira vez e vi o meu olhar, achei impressionante, me conectei com as imagens da minha avó, com o olhar dela em algum momento perdido de sua existência tão fechada e indisponível para todos nós. Meu queridíssimo pai fotógrafo sinto muito orgulho de te ver hoje finalmente escolhendo viver essa arte que no fundo nos escolhe, a sua coragem me inspira. Parabéns. Você é um homem muito especial, continue nesse caminho que é só seu, você nasceu para isso.

Te amo profundamente.

Didi.

3 comentários:

  1. Di, é seu, é de vocês. Mas achei arrebatador. Chorei muito!Acho que tô psico total(rs)...

    "Lá descobri que a foto não precisava mais ser bonita, ela tinha que ter conteúdo, lá me apaixonei pelo Duane Michaels. Queria expressar toda a angústia que sentia naquele momento através das minhas fotos, queria contar as minhas histórias."

    "Lembro quando vi as fotos dela pela primeira vez e vi o meu olhar, achei impressionante, me conectei com as imagens da minha avó, com o olhar dela em algum momento perdido de sua existência tão fechada e indisponível para todos nós."

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  2. valeu bela!!! fico emocionada de poder te tocado com algo tão intimo! beijão!

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  3. adoro a redescoberta dos talentos, o espaço novo. e a sabedoria de saber lembrar das nossas historias. lindo di, to contigo e dou a maior força: seu olhar tem poder!
    bjao

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